terça-feira, 6 de março de 2012

Barbara se salvou

Andava com medo de tudo. Tudo.
Vontade de correr dos homens, dos carros,da vida.Vontade de distancia, que era reflexo da distancia segura que mantinha de si mesma; aquela passagem rápida diante do espelho, aqueles quilos a mais que só ela via, aquela ruga que brotaria em exatos nove anos mas que ela forçava perceber, o blush que já não dava realce algum, os cabelos nitidamente opacos, as pontas destruídas como os sonhos, a percepção de que o mundo se diluía diante de si nas noites do fim-de-semana, de modo que toda aquela correria e dureza estrutural da semana inteira não passava de vapor barato.Assustava-se com isso, como uma criança que já não pode ver a mãe, ainda que ela esteja ali, no quarto ao lado, ainda que as segundas continuassem todas no calendário.
Era absolutamente linda, Mas o seus olhos não podiam ver.Era graciosa, e o cortejo das obras não lhe poupava adjetivos vulgares, do tipo que, em determinado momento da vida, fazem toda a diferença para toda mulher.Tinha a graça de uns olhos claros, radiantes, bochechas rosa, corpo sinuoso, cabelos agraciados com um castanho escuro radioso incendiado por umas madeixas claríssimas...a voz era doce, voz de mulherão, embora fosse relativamente jovem.Habitava o sonho de muitos dos seus poucos colegas homens, mas não podia ver, não podia supor, não podia acreditar que aquele bagulho-donde-toda-e-qualquer-roupa-ganha-cara-de-farrapo, de roupa achada, de tamanho inconforme pudesse esconder uma linda, e rara, mulher.
Aqueles ensaios diante dos espelhos dentro dos provadores das lojas não conseguiam atravessar a porta de saída de sua insegurança e deixá-la feliz.
Das vezes que se demorara diante do espelho, percebera no nariz uma saliência excessiva, que escondia a todo custo com os cabelos,sempre jogados sobre uma das faces, sempre delineando tão bem o seu corte parnasiano.
A fome lhe incomodava às vezes. A falta de glicose também. O amor devotado ao chocolate, de quem fugia como o diabo da cruz também. Todo o resto lhe incomodava sempre.
Viver era um martírio feroz, dividido entre alguns momentos de descontração com os poucos amigos off-line que mantinha sem esforços.
Ocorreu-lhe uma ideia absurda no dia em que a balança lhe disse que ela havia se tornado ainda mais feia: suicídio.
Na faculdade era uma aluna excepcional.No trabalho não era diferente.Com a família tinha la os seus desconfortos, mas nada que atrapalhasse o andamento dos domingos de puro tédio.Mas no amor, no amor, assim como na moda, era um horror.
Aquelas trepadinhas rápidas já não bastavam. Era preciso amor.Amor daquele tipo que alimenta os poetas.Amor de choro, de ranger de dentes...amor do tipo que arrebenta com os grilhões da razão, joga por terra o centro de gravidade...amor alucinante, lancinante que fosse...amor, daqueles de novela, de enredo desgastado e asperamente criticado;mas que, do outro lado da tela, e da vizinhança, causa suspiros quando acontece...
Vinte e poucos anos. vinte e poucos títulos.vinte e poucos mil por ano, mas de amor, nem um vintém...só aquela dor quando via, nem tao de longe, alguma conhecida brigando com o namorado ciumento...aquele desejo, aquela ferocidade, aquele sentimento capaz de lançar fagulhas de ambos os olhares...e para ela só o torpor de algumas poucas palavras bonitas ao fim da noite e, antes do final de semana, no começo do dia.
Suicídio.Simples.Solitário.
Comprara um medicamento deletério, sobretudo se misturado com álcool.
Comprara whisky, vodca, Martini e a delicadeza de alguns limões.
Comera ali, ainda do lado da prateleira,mais de meia barra de chocolate, porque, acontecesse o que acontecesse, a metafísica que fosse não deveria ter ressalvas para o excesso de peso que percebia em si...
No seu ultimo dia de aula fora a mesma de sempre, sem martírios ou despedidas. Guardara ainda a agenda de um colega que ficou debaixo da classe ao lado da sua. Tentou entregá-la a outros colegas, mas todos se esquivavam da gentileza e isso a amargurou mais, a falta de solicitude deste mundo, que partisse mesmo, como um raio, como um corte que não deixa sequer cicatriz...
Sozinha no seu AP na cidade baixa preparara seu coquetel com bastante aplicação, zelo.
Dentro da agenda daquele colega uma foto sua, tirada de lado, furtada...Mas ai, antes de bebê-lo, a surpresa...
E umas duzentas e tantas paginas de poesia! Delírios de amor, cantados em sinuoso lirismo... Magníficos sonetos, metrificados, heróicos para sua heroína.Rios de amor que escorriam em linguagem tão próxima das vísceras e do DNA, que não havia racionalização capaz de refutar...
Uma dúzia de poemas eróticos, prometendo ao seu corpo um deleite seguramente recheado de putaria. Uma analise pontual de cada uma de suas curvas: seu busto elevado pela curvatura cervical; seu lábio proeminente rosado e ligeiramente umedecido por algum manjar divino; seu cabelo recoberto de um dourado roubado de algum trigal, suas coxas lisas e marmóreas...tudo teria, segundo aquele enfurecido e apaixonado eu-lirico, o mais vivido e sedento cuidado...
Na potencia invisível das pequenas delicadezas que compõem a vida, Barbara se salvou.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A [re] invenção do cotidiano: um grito que irrompe das minas de carvão (Id).

Certeau faz uma longa e bonita análise sobre as micropoliticas e microresistencias que o “estranho”, o “ruído sem voz” lança mão para não ser, de fato, consumido pelo totalitarismo capital, isto é, pelas táticas incansáveis do capitalismo para nos por no jogo eterno e assassino da oferta x procura, da busca por objetos totais, da dança sem fim atrás da felicidade que se esconde por detrás de um pote de Doriana.
Eu, que novamente habito uma mina de carvão, decidi refletir sobre essas “malandragens” sob o viés da psicanálise e tive uma iluminação [ainda que remotamente original]: nunca seremos domesticados, basicamente porque, tendo por detrás da polidez do contrato social um inconsciente, temos a tendência a buscar satisfação. Mesmo quando essa satisfação se maquiar de objetos totais a partir do uso de “tecnologias del controle”, nós seremos capazes de, inconscientemente, descobrir que estamos ‘comendo-balas-com-plastico-e-tudo’ e lançar mão de estratégias para poder “comer” sem estar sendo, de fato, comido.
Com base nessa profusão confusa de teóricos, compartilharei algumas dessas microresistencias que eu suponho identificar no ‘barato’ do meu cotidiano: o comerciante afinado com religiões abnegadas que estoca ouro no quarto dos fundos; a menina bonita que abandona a fluoxetina e encara a vida de frente; o camarada que come as gatinhas ricas com “camisinhas” fornecidas pelo estado, o artista que toca uma de suas canções no meio do ‘pacote’ contratado pelo chatissimo dono de pizzaria nomeando-a como uma canção do Chico; a mãe que rouba iogurte para o filho no meio dos peitos fartos; a menina que viaja de uma estado ao outro em busca do amor mesmo sendo apaixonada por Thoreau; do camarada peso-pesado que se recusa a tomar água com açúcar light para satisfazer a demanda da cultura; da moça prendada que ‘corneia’ o marido agressivo em busca de amor; do filho que ouve “people are strange” só para ser olhado pelo pai que ama o Wagner...Não raro, nestes meus exemplos, é possível vislumbrar aquilo que, comumente, denominamos “desvio de caráter”.Mas, afinal, para que mesmo serve a moral e a ética no cotidiano? Desde que nos tornamos “esclarecidos”, elas não fazem outra coisa senão favorecer o ideal burguês, o vitalício desejo de controle e disciplina do patrão que, enriquecendo às custas do trabalho do operário, insiste no velho bordão da correção e da honestidade como princípios fundamentais de toda e qualquer existência[o que compõe uma paradoxo interessante quando pensamos que ele enriquece, ganha em media mil vezes mais que o funcionário, tem grandes perspectivas e, de quebra, engendra mecanismos para manter os seus humildes servos presos no seu esquema alienante...]. Quando Freud narra o ‘nascimento do superego’ a partir do assassinato do “homem primevo” [o chefe da horda], ele inaugura uma das mais belas narrativas alegóricas que conheço, entretanto, uma vez na mão das pessoas erradas, tal conhecimento passou a servir de aparato psíquico para a subserviência. Deste modo, percebe-se que ego [enquanto instancia de conciliação, self] e superego [instancia de doutrinação] não passam de dois ‘diabinhos maquinando contra o próprio eu’... Felizmente, no meio desse arsenal de ‘tecnologias’, há um sujeito bacana e com muita vontade de potencia: o Id; e é exatamente este nosso Guevara interior que nos possibilita , enquanto indivíduos ou coletivos, utilizarmos táticas de confrontação sutil, ou malandragens para escapar a vontade de homogeinização da ‘cultura global’ e suas identidades “Pret a Porter”.
Meu período nessa adorável mina de carvão esta se esgotando e eu estou bastante satisfeito com a potência inesgotável dos seus gritos, desses movimentos viscerais...
Pena que muitos aqui não estejam dispostos a escutar... Talvez com medo de ouvir “que o pior de tudo é perceber, que apesar de tudo, tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais...”.


terça-feira, 18 de outubro de 2011

Eu confesso:

Três décadas de verdades construídas com algumas lagrimas e suor (afinal,criação é transpiração). Uns bonés antigos dos tempos ruralistas, umas medalhas de bronze corroídas pelo tempo, uma fita cassete azul com um ‘disco’ dos Stones, uma guitarra barata e furiosa, um violão pequeno burguês, um dicionário de latim doado por uma bibliotecária charmosa aos noventa,uma coleção de camisetas pretas abandonadas pela inspiração,um all star carcomido pelas peladas e piadas, algumas canções de amor,outras de dor,outras de tédio, outras que se propunham a remédio...
Um discurso errante, inseguro,frágil.Um punho aposentado já a algum tempo.
Uma caricatura do Cavaleiro da Mancha que eu fiz aos quinze, pintei aos dezoito e vesti aos trinta...
Amigo de todo tipo, até do tipo que não é tão amigo, mas faz falta quando some...doidos,pirados,sonhadores,idealistas, metódicos, maltrapilhos, caretas, carecas, do tipo ‘titio’, narciso, menina vaidosa, bonitona insuportável, tapetes vermelhos nos templos do Nada, amigas sisudas, metro e meio de perna, karate, Katinguele, Karapintada, Karapálida,Kamikase...
Aqueles senhores com quem faço um som caipira atravessando os acordes nas suas vozes de campeiros de verdade sem escudo nem reconhecimento do estado...Amigo peão(dos bons).
Amigas, santas da psicologia, da posologia, da pedagogia, da pornografia,da coragem, da vaidade, das pernas de fora no frio que se segue...das dores de amor mesmo que negue...amigas azuis, verdes,vermelhas e um tipo sem sal e intolerante e intolerável do tipo ‘eu-acho-que-o-mundo-inteiro-me-ama’.Amigas de boteco, de bilhetes e de lama...
Que beleza poder fazer o bendito exercício metacognitivo e dizer para si mesmo do alto da crise existencial que rege todo aniversario: “tem sido bom essa loucura toda...esse contrato de verdade...essa fraqueza...essa disposição a abraçar antes de dizer oi...tem sido bom ver que aqueles primos gêmeos e irmãos continuam amando a si e aos outros com tanto vigor,mesmo depois de tanta neve...mesmo depois de tanta prece,mesmo depois de tanto amor, porque o amor, as vezes, é um veneno letal...
Tem sido bom contemplar tudo com um pouco de afastamento...isto é, ser um projeto de autonomia kantiana com boas doses de caipirismo, como se aventura a dizer por ai um moço muito meu amigo.Tem sido bom redigir o ‘discurso de eu’ com vistas na grandeza absoluta do outro, seja la que outro for...
Eu já virei a casaca muitas vezes... Fui maragato,chimango,brasileiro convicto...eu já fui romântico, introspectivo,faceiro...negro,branco,vendedor de abacaxis e sonhos...vejo uma molécula minha em caras como aqueles que arrumam as estradas com panos úmidos na cabeça, felizes porque os outros seguem adiante;vejo nos poetas,filósofos,doutores,professores,pintores,peões,leiteiros alemães bonachões e com vividos olhos claros, vejo nas reticências de uma menina com quem pouco tenho contato,por quem nutro grande afeto...
Vejo em tudo isso uma centelha flamejante e desvairada que eu chamo de vida.
Vejo minha filha crescer com um sorriso-saude-sem-preço, colorindo o meu castelo.
Vejo minha ‘namoradinha-de-uma-década’ reluzindo beleza e frescor raros.
Tenho as mãos de minha mãe sobre a minha fronte, como Santa da qual sou devoto...
Tenho lembranças do meu pai,vívidas como eu...
Tenho irmãos que me dão orgulhos e orgulhos, de modo que ate esqueço a síndrome do irmão do meio...
Tenho tanto do que não se pode vender ou comprar que eu até me assusto vez que outra...
Tenho uma solidão solidária, que me ajuda a chegar perto de quem não tem vez...
Tenho um pouco da ignorância e orgulho que ferem a alma.
Tenho firmado a minha condição de quixotista com meus discursos e brinquedos,gerando amor,por vezes,medos...
Tenho a certeza que eu estou no meu caminho, ainda que esta certeza esteja somente ao lado Del camino ainda antes do último acorde dessa pequena e trôpega narrativa.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Admirável Rumo Novo... (só não vai quem já viveu)

Eis o nome do meu bloco.
Um bloco criado para aqueles que ainda não viveram tudo que há para viver e, por isso, vivem um tanto inquietos, inconformados, descontentes com realidades imutáveis.
Diferentemente daqueles que vivem sentados em altares de sabedoria, o meu bloco é feito para aprendizes, para aquele tipo de pessoa que, mesmo estando maravilhada com certas novidades do mundo, ainda conseguem perscrutar, a partir de alguns vapores que escapam ao divino, o brilhantismo e exuberância do futuro de quem se dá ao luxo da “errância”.
Meu bloco é para os "excluídos"; não cabe nele gente feliz demais, tampouco gente demasiadamente sucedida, e ainda que eu quisesse que coubesse, também não podem entrar famílias absolutamente estruturadas, que beiram a perfeição (daquele tipo cujos filhos herdam o nome e a profissão dos pais para serem tão íntimos que não precisam nem se cumprimentar pela manhã) porque vejo nelas uma grande armadilha; não pode, também, gente bonita por fora, a menos que estejamos certos, eu e o resto do mundo, que é ainda mais linda por dentro; fato raro, pessoas bonitas e delicadas que até parece que são feias, raríssimo.
Embora pareça um radicalismo, eu lamento informar: aqueles que ocupam os mesmos lugares desde o principio não podem entrar; alias, até podem, se não forem alérgicas a liberdade, afinal, estagnação é um mal para o qual ainda não se tem antídotos nem homeopatias.

Gente sem sucesso, sem grandes posses, sem popularidade, tem um lugar cativo no meu bloco. “People are strange” será um dos nossos hinos, e o nosso ritmo será o ritmo dos nossos novos rumos. Aqueles que choram, caem, navegam, gozam; ficam bêbados e dão escândalos de vez em quando; choram por um amor ido, aqueles que sonham em chegar a algum lugar algum dia, aqueles que ainda se compadecem com aquelas coisas sujas e fedorentas que ficam amontoadas embaixo dos viadutos das cidades, que eu costumo chamar de ser humano; pessoas que passam domingos sozinhas, feriados trabalhando,anos-a-fio-na-posição-de-combatente-ainda-que-sem-sucesso; pessoas que sorriem para estranhos, que conversam com estranhos, pessoas que sentam ao lado de gente estranha e estranhas ficam, enfim, todos puxam meu bloco.
Se o leitor ainda tem paciência para mais uma regra, acresço: pessoas que gostam de crianças.Essas,sim,são praticamente donas do bloco.
Pessoas sérias, sisudas, autoritárias, fálicas, nem pensar, porque reservamos o lugar delas para as pessoas que gostam de animais, da grama, da natureza, arvores, pássaros, beleza do mundo,até porque acredito que elas iam achar um tédio absurdo essa coisa de valorizar verdadeiramente(isto é, valorizar para além do discurso bonito e vazio) os pequenos grandes momentos da vida.
Quem não gosta de ir para outras paragens, de habitar outros territórios, de alguns mosquitos e grama úmida, de se reinventar; Bem, com relação a estes, é melhor nem quererem entrar, afinal, podem ter reações adversas.
Fato é que tô com bloco novo na praça; e agora, penso que tô no meu caminho...ao lado del camino.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Meu Bloco

O menor post para anunciar a fundação de um bloco:
Admirável Rumo Novo...Só não vai quem já viveu...


ps- o próximo post tratará deste tema; só não o faço agora porque os meus pés não deixam...

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

"Na pista pra negócio"

Há um dia nas nossas vidas (eu espero que isso aconteça com todos, sinceramente) que temos uma “iluminação”(mistura da acepção judaico-cristã, com a palavra lucidez, inda com a palavra educação- ex- duco- e umas horas a mais de sono).Um dia simples, onde as coisas discorriam mais ou menos da mesma forma frágil e estruturada de sempre -(som de um estalo de dedos)-, e algo acontece e muda as nossas vidas, definitivamente.
Ontem, durante o ocaso do sol, eu tive a minha iluminação.Um flash que iluminou e lançou feixes de luz sobre todas as coisas antes vistas, sobre todas as coisas anteriormente pensadas, um insight cujo reflexo se estendeu as amarras teóricas que esse pequeno fenômeno gerou em milésimos de segundo, assentando tudo que eu já vi, li e vivi ate então, num berço de tranqüilidade e serena alegria.
Andando eu me dei conta: agora, sou um homem livre.
Sartre afirmava que todos os homens são inadvertidamente livres, e que não podemos nos abster da responsabilidade dos nossos atos; mas, para mim, assim como parece ser para o Corpo Estranho, essa não é uma questão tão simples.Primeiro, porque esse recorte temporal chamado pós-modernidade, mãe de todas as horizontalidades( no sentido de que tínhamos relações tipicamente verticais, cujo figura central era paterna e toda a significação girava em torno de uma hierarquia fálica) acaba nos confundindo com sua infinidade de possibilidades, de relativismo, de devires, de liberdade democrática, sexual, intelectual, pessoal, etc.Segundo, porque todos esses séculos de disciplina e controle acabam produzindo, a quem de qualquer ressalva, um certo apego e medo de sair-desse-lugar-de-credito-e-status-de-identificacao-global-e-lugar-comum.Essas duas causas são mais do que suficientes para embalar qualquer duvida, independentemente de serem vistas, ou analisadas, juntas ou separadamente.
Logo, havia uma agonia pungente nesse meu movimento kamikase-riponga-filosofico-reeditante que não estava me permitindo “caminar” em paz até então.
Mas ontem, saudoso leitor (a), essa angustia morreu.
E, bendito sejam os deuses do acaso ( que afirmam que felicidade não é coisa que se conquiste), durante alguns passos lentos na universidade, sozinho, com uma mochila cheia de lembranças e um pouco de água de bebedor dentro de uma garrafa vazia de coca-cola, eu pude sentir.Fui atravessado por essa conclusão popularíssima e feliz: Eu to na pista pra negócio!!!
Depois de algumas conversas informais com gente bem formada, vídeos de psicanálise lacaniana, um palestrante Português, um pouco de refrigerante sem gás e uma discussão metacognitiva embolada sobre comportamentalismo, marxismo vulgar, platonismo torto e estruturalismo capenga (ou irracionalismo, que dá a tudo isso uma imagem ainda mais delirante), eu descobri que, no mínimo, ganhei todas as possibilidades que não tinha se estivesse ainda naquele berço infame e alienante que estava.
Eu posso fazer o que eu quiser.
Até confesso que é um pouco sufocante lidar com todo esse potencial. Afinal, diante de três décadas de linearidade absoluta dobrar uma esquina é uma aventura, e toda aventura pressupõe novidade, novos rumos, novas estradas, novos caminhos, novas experiências, novas “novas”.
Por outro lado, haverá coisa mais fascinante do que não ter certeza do que se estará fazendo amanha? Trabalhando com quem? Com que especificamente? Que tipos de situações, enfrentamentos aparecerão? Quais serão os medos, receios?(afinal, eles são parte indissociável de toda e qualquer vivencia humana).
Certamente, aparecera ai algum cético um tanto deprimido e controlador que cogitará o “óbvio ululante” de que “isso tudo é muito bonito no discurso, mas dificilmente aplicável a vida real”. Deverá, ainda, dizer que é preciso sobreviver, ganhar a vida, sustentar-se; e que toda essa errância só poderia resultar em miséria e desolação...
Entretanto, haverá maior desolação, maior miséria, do que a de um individuo que ao longo de toda sua existência não foi capaz de apostar em si mesmo uma única vez? Não foi capaz de impor-se a ladainha racionalista e pobre de que é preciso seguir os passos daqueles que tem sucesso, êxito em suas vidas, ainda que seja um êxito estritamente profissional...Não foi capaz, uma só vez, de chorar e não sentir vergonha disso.Não foi capaz de implorar o amor de alguém, não foi capaz de um porre, de um “erre” a mais, de um tropeço público nos tapetes da etiqueta; não foi capaz de dizer uma só vez “quem é mesmo o dono de quem”.
Não foi capaz de concluir que dizer não a despedida significa fulminar com a chance de um reencontro.
É incrível como algumas brechas no presente podem abrir novas portas para o futuro.Como a falta de uma residência fixa e imutável põe os nossos pés no mundo.Como algumas conversas idiotas de boteco, tomando cerveja as três da tarde de uma segunda-feira podem nos levar a colocar as mãos na coroa que nos fará senhores dos nossos destinos.
Felicidade não é coisa que se mereça. Repito.
O Acaso é um amigo intimo da capacidade (e necessidade) criativa do homem, seja lá que homem for...
É por isso, somente por isso, que eu tô na pista pra negócio, porque "o caminho da liberdade é a própria liberdade".





domingo, 19 de junho de 2011

O principio

No principio, era um instinto. Depois, fora investido de linguagem e virou “eu”. Eis a minha teoria para a natureza da complexidade da vida humana.
O roteiro é bem simples, simplíssimo e não vou tentar torná-lo hermético: nascemos e, à medida que crescemos, tornamos os objetos primordiais tão complexos que, definitivamente, deixamos de conhecê-los.
Fica o exemplo bom vivant: comer, no começo é chorar e comer. Um chorinho aqui, outro ali e o “seio bom” salta aos olhos e sorrimos, bebes lindos[todos os bebes são lindos] e satisfeitos.Olhos comprimidos, ligeiramente escuros, com um brilho análogo ao de uma estrela cadente, umas bochechas coloridas e um riso bem fácil.Então, saciados e sem muito o que fazer, passamos a engendrar maluquices para compor a nossa subjetividade.Um pouco maiores, já não basta-nos somente o seio.È preciso ter a mãe para si.Tê-la por ali, vigiando-nos e falando naquele bom e velho “manhês”, aquecendo-nos, colorindo-nos, inventando apelidos pitorescos, ninando, cantando...depois, seguindo a trilha do verbo comer, começamos a escolher o que queremos comer, começamos a selecionar alimentos, começamos a selecionar temperos, a escolher “marcas”, temperaturas, cheiros, origens e, por fim, para provar que adoramos o hermetismo, atribuímos um valor estético ao alimento.Já não basta que seja um alimento, é preciso que seja, também, bonito, sofisticado,original; é ou não é o caos?
Para aquelas que não parceiras que não se convencem com facilidade das minhas pobres teorias, então, adotemos um tema mais picante... Sexo.No começo é perverso polimorfo, isto é, pode se ter prazer de muitas formas, enfim, prazer, apesar de ser de uma forma primitiva.Atravessados todos os “Édipos”, já não basta mais aquela alisadinha...Chegamos a adolescência com a típica efervescência hormonal, masturbação, ereções repentinas, professoras escandalizando inconscientemente os nossos desejos com aqueles vestidos de verão finíssimos, aquelas peles joviais, aqueles seios(falaremos da disciplina depois, ironicamente...); as colegas que odiávamos até bem pouco tempo começam a ter contornos que nos tiram de orbita com um balançar de cabelos, começamos a adorar os decotes e as saias;entretanto, ainda aí, há muito de simplicidade e o homo-sapo consegue ter um prazer imenso com a sua masturbação.com o tempo(e sorte) arrumamos uma parceira, uma paixão, um “pathos”.Então, nada no mundo, absolutamente, supera a delicia de explorar a intimidade feminina, viramos metrônomos ensaístas que adoram variar o tempo do “vai- não – vai”; orquestradores que adoram acelerar e desacelerar o ritmo das coisas... Mas, como somos bem estranhos, precisamos inventar mais coisas; é preciso que a mulher goze, depois, é preciso que ela goze junto, sincronia total, depois, é preciso que ela goze antes, depois goze duas, depois três, depois, nossa... é preciso acrobacias, lugares perigosos, praias, areia, lua, cremes, chocolates,algemas, chicotes, botas, chuva, sol, música,halls...esses dias um amigo me mostrou um vídeo cuja legenda era “gangorra”(difícil de explicar, o cara fazia uma perpendicular e ficava se balançando em cima da mulher, subia e descia e seus pés quase tocavam a cabeça dela como uma martelo; mas devia ser bom, porque ela soltava uns gemidos bem sacanas...); fazemos tudo isso para termos o mesmo orgasmo que tínhamos com a masturbação dos primórdios, dá para acreditar...então, são dois exemplos elementares: do leite natural até a sofisticação culinária máxima e do orgasmo básico até uma apresentação digna do Cirque du soleil.
Agora, para fechar a serie de exemplos, pensemos na intelectualidade: no começo, um “A de abelhinha”. Lembro como se fosse hoje, a professora Barbara me ajudando a colar bolinhas de papel pequeninas numa grande letra a desenhada a mão numa folha A4; coloria aquela letra que estava recheada com uma abelha graciosa, depois colava as bolinhas de papel ao redor dela e recebia um “muito bom” seguido de um sorriso gracioso daquela mulher doce.Educação silábica, juntava esse “a” com outra letrinha e formava uma silaba, depois formava uma palavra e, num passe de mágica, aprendia a ler e escrever; também não posso deixar de citar o esforço de minha mãe, que foi quem me alfabetizou desenhando também as letras para mim num caderno de notas velho com um lápis praticamente sem ponta quando eu tinha cinco anos; ela sempre foi muito lúcida e amável e me incentivava muito fazendo leituras e rabiscos, apesar de ter cursado somente o fundamental.
Uma vez lendo e escrevendo, passamos aos verbos, frases, orações. De uma fabula sobre a mata nativa e alguma lenda caigangue com ou sem saci e final feliz, passamos, com sede, as biografias, aos livros de aventura, historia, teologia, escolástica, matemática, soma, subtração, divisão, cartesianismo, racionalismo, idealismo, platonismo, irracionalismo, marxismo, niilismo, física, sociologia, astronomia, psicanálise, artes plásticas, composição dos vinhos, coletivos dionisíacos, tragédia, espiritualismo, paganismo, pornografia, culinária, astronomia, astrologia(mesmo nas versões vulgares de jornais diários), um sem-fim de “saberes” que se entrelaçam na composição de um todo que nos dá a mesma satisfação de ter concluído aquela “abelhinha”.Sinceramente, dá menos satisfação.
Então eu sempre me questiono se, ao passo de uns oitenta anos, se Deus quiser que eu chegue lá (eu quero só duzentos e oitenta!!!), eu finalmente não terei deixado de saber, de fato, o que é comer, o que é gozar, o que é ler um livro simples e bonito.Trilhamos um caminho de complexificação de tudo que eu temo um dia não entender mais nada; mergulhar nesse relativismo que assombra grande parte da humanidade e ver a certeza das coisas “fluindo”, como prega a “pós-modernidade”.
Isso sempre me lembra o Caeiro: “há metafísica bastante em não pensar em nada”. Ou numa formulação nietzschiana que aqui ganha um contorno próprio: uma marinheiro que, durante uma tempestade em alto mar, conhece a formula química da água...A mesma água que bebemos na infância com gosto, com sede, com ou sem cloro; a mesma água das fontes que embalaram sonhos e desejos realizados, as mesmas que receberam moedas e mãos inocentes.
Talvez um dia ainda iremos não saber mais o que é, de fato, a água... Ainda que morramos afogados. Depois de tanta complexificação... Desde o momento em que nossos instintos são investidos de simbologia passamos a experimentar e representar o mundo de uma forma cada vez mais “rica”, cada vez mais subjetiva, cada vez menos úmida...
E tem colegas minhas que ainda se assustam quando me vêem perscrutando fria e apaixonadamente uma garrafa de água de 600ml dentro da sala de aula, enquanto a professora explica en passant o que significa tal comportamento enquanto representação de uma sintomatologia...
E eu que pensava que lavar as mãos era só lavar as mãos...
Então, mais uma vez, vamos em frente: lavar as mãos = TOC, transtorno obsessivo compulsivo ou Lavar as mãos = Pôncio Pilatos, alusão ao ato de...