terça-feira, 6 de março de 2012

Barbara se salvou

Andava com medo de tudo. Tudo.
Vontade de correr dos homens, dos carros,da vida.Vontade de distancia, que era reflexo da distancia segura que mantinha de si mesma; aquela passagem rápida diante do espelho, aqueles quilos a mais que só ela via, aquela ruga que brotaria em exatos nove anos mas que ela forçava perceber, o blush que já não dava realce algum, os cabelos nitidamente opacos, as pontas destruídas como os sonhos, a percepção de que o mundo se diluía diante de si nas noites do fim-de-semana, de modo que toda aquela correria e dureza estrutural da semana inteira não passava de vapor barato.Assustava-se com isso, como uma criança que já não pode ver a mãe, ainda que ela esteja ali, no quarto ao lado, ainda que as segundas continuassem todas no calendário.
Era absolutamente linda, Mas o seus olhos não podiam ver.Era graciosa, e o cortejo das obras não lhe poupava adjetivos vulgares, do tipo que, em determinado momento da vida, fazem toda a diferença para toda mulher.Tinha a graça de uns olhos claros, radiantes, bochechas rosa, corpo sinuoso, cabelos agraciados com um castanho escuro radioso incendiado por umas madeixas claríssimas...a voz era doce, voz de mulherão, embora fosse relativamente jovem.Habitava o sonho de muitos dos seus poucos colegas homens, mas não podia ver, não podia supor, não podia acreditar que aquele bagulho-donde-toda-e-qualquer-roupa-ganha-cara-de-farrapo, de roupa achada, de tamanho inconforme pudesse esconder uma linda, e rara, mulher.
Aqueles ensaios diante dos espelhos dentro dos provadores das lojas não conseguiam atravessar a porta de saída de sua insegurança e deixá-la feliz.
Das vezes que se demorara diante do espelho, percebera no nariz uma saliência excessiva, que escondia a todo custo com os cabelos,sempre jogados sobre uma das faces, sempre delineando tão bem o seu corte parnasiano.
A fome lhe incomodava às vezes. A falta de glicose também. O amor devotado ao chocolate, de quem fugia como o diabo da cruz também. Todo o resto lhe incomodava sempre.
Viver era um martírio feroz, dividido entre alguns momentos de descontração com os poucos amigos off-line que mantinha sem esforços.
Ocorreu-lhe uma ideia absurda no dia em que a balança lhe disse que ela havia se tornado ainda mais feia: suicídio.
Na faculdade era uma aluna excepcional.No trabalho não era diferente.Com a família tinha la os seus desconfortos, mas nada que atrapalhasse o andamento dos domingos de puro tédio.Mas no amor, no amor, assim como na moda, era um horror.
Aquelas trepadinhas rápidas já não bastavam. Era preciso amor.Amor daquele tipo que alimenta os poetas.Amor de choro, de ranger de dentes...amor do tipo que arrebenta com os grilhões da razão, joga por terra o centro de gravidade...amor alucinante, lancinante que fosse...amor, daqueles de novela, de enredo desgastado e asperamente criticado;mas que, do outro lado da tela, e da vizinhança, causa suspiros quando acontece...
Vinte e poucos anos. vinte e poucos títulos.vinte e poucos mil por ano, mas de amor, nem um vintém...só aquela dor quando via, nem tao de longe, alguma conhecida brigando com o namorado ciumento...aquele desejo, aquela ferocidade, aquele sentimento capaz de lançar fagulhas de ambos os olhares...e para ela só o torpor de algumas poucas palavras bonitas ao fim da noite e, antes do final de semana, no começo do dia.
Suicídio.Simples.Solitário.
Comprara um medicamento deletério, sobretudo se misturado com álcool.
Comprara whisky, vodca, Martini e a delicadeza de alguns limões.
Comera ali, ainda do lado da prateleira,mais de meia barra de chocolate, porque, acontecesse o que acontecesse, a metafísica que fosse não deveria ter ressalvas para o excesso de peso que percebia em si...
No seu ultimo dia de aula fora a mesma de sempre, sem martírios ou despedidas. Guardara ainda a agenda de um colega que ficou debaixo da classe ao lado da sua. Tentou entregá-la a outros colegas, mas todos se esquivavam da gentileza e isso a amargurou mais, a falta de solicitude deste mundo, que partisse mesmo, como um raio, como um corte que não deixa sequer cicatriz...
Sozinha no seu AP na cidade baixa preparara seu coquetel com bastante aplicação, zelo.
Dentro da agenda daquele colega uma foto sua, tirada de lado, furtada...Mas ai, antes de bebê-lo, a surpresa...
E umas duzentas e tantas paginas de poesia! Delírios de amor, cantados em sinuoso lirismo... Magníficos sonetos, metrificados, heróicos para sua heroína.Rios de amor que escorriam em linguagem tão próxima das vísceras e do DNA, que não havia racionalização capaz de refutar...
Uma dúzia de poemas eróticos, prometendo ao seu corpo um deleite seguramente recheado de putaria. Uma analise pontual de cada uma de suas curvas: seu busto elevado pela curvatura cervical; seu lábio proeminente rosado e ligeiramente umedecido por algum manjar divino; seu cabelo recoberto de um dourado roubado de algum trigal, suas coxas lisas e marmóreas...tudo teria, segundo aquele enfurecido e apaixonado eu-lirico, o mais vivido e sedento cuidado...
Na potencia invisível das pequenas delicadezas que compõem a vida, Barbara se salvou.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A [re] invenção do cotidiano: um grito que irrompe das minas de carvão (Id).

Certeau faz uma longa e bonita análise sobre as micropoliticas e microresistencias que o “estranho”, o “ruído sem voz” lança mão para não ser, de fato, consumido pelo totalitarismo capital, isto é, pelas táticas incansáveis do capitalismo para nos por no jogo eterno e assassino da oferta x procura, da busca por objetos totais, da dança sem fim atrás da felicidade que se esconde por detrás de um pote de Doriana.
Eu, que novamente habito uma mina de carvão, decidi refletir sobre essas “malandragens” sob o viés da psicanálise e tive uma iluminação [ainda que remotamente original]: nunca seremos domesticados, basicamente porque, tendo por detrás da polidez do contrato social um inconsciente, temos a tendência a buscar satisfação. Mesmo quando essa satisfação se maquiar de objetos totais a partir do uso de “tecnologias del controle”, nós seremos capazes de, inconscientemente, descobrir que estamos ‘comendo-balas-com-plastico-e-tudo’ e lançar mão de estratégias para poder “comer” sem estar sendo, de fato, comido.
Com base nessa profusão confusa de teóricos, compartilharei algumas dessas microresistencias que eu suponho identificar no ‘barato’ do meu cotidiano: o comerciante afinado com religiões abnegadas que estoca ouro no quarto dos fundos; a menina bonita que abandona a fluoxetina e encara a vida de frente; o camarada que come as gatinhas ricas com “camisinhas” fornecidas pelo estado, o artista que toca uma de suas canções no meio do ‘pacote’ contratado pelo chatissimo dono de pizzaria nomeando-a como uma canção do Chico; a mãe que rouba iogurte para o filho no meio dos peitos fartos; a menina que viaja de uma estado ao outro em busca do amor mesmo sendo apaixonada por Thoreau; do camarada peso-pesado que se recusa a tomar água com açúcar light para satisfazer a demanda da cultura; da moça prendada que ‘corneia’ o marido agressivo em busca de amor; do filho que ouve “people are strange” só para ser olhado pelo pai que ama o Wagner...Não raro, nestes meus exemplos, é possível vislumbrar aquilo que, comumente, denominamos “desvio de caráter”.Mas, afinal, para que mesmo serve a moral e a ética no cotidiano? Desde que nos tornamos “esclarecidos”, elas não fazem outra coisa senão favorecer o ideal burguês, o vitalício desejo de controle e disciplina do patrão que, enriquecendo às custas do trabalho do operário, insiste no velho bordão da correção e da honestidade como princípios fundamentais de toda e qualquer existência[o que compõe uma paradoxo interessante quando pensamos que ele enriquece, ganha em media mil vezes mais que o funcionário, tem grandes perspectivas e, de quebra, engendra mecanismos para manter os seus humildes servos presos no seu esquema alienante...]. Quando Freud narra o ‘nascimento do superego’ a partir do assassinato do “homem primevo” [o chefe da horda], ele inaugura uma das mais belas narrativas alegóricas que conheço, entretanto, uma vez na mão das pessoas erradas, tal conhecimento passou a servir de aparato psíquico para a subserviência. Deste modo, percebe-se que ego [enquanto instancia de conciliação, self] e superego [instancia de doutrinação] não passam de dois ‘diabinhos maquinando contra o próprio eu’... Felizmente, no meio desse arsenal de ‘tecnologias’, há um sujeito bacana e com muita vontade de potencia: o Id; e é exatamente este nosso Guevara interior que nos possibilita , enquanto indivíduos ou coletivos, utilizarmos táticas de confrontação sutil, ou malandragens para escapar a vontade de homogeinização da ‘cultura global’ e suas identidades “Pret a Porter”.
Meu período nessa adorável mina de carvão esta se esgotando e eu estou bastante satisfeito com a potência inesgotável dos seus gritos, desses movimentos viscerais...
Pena que muitos aqui não estejam dispostos a escutar... Talvez com medo de ouvir “que o pior de tudo é perceber, que apesar de tudo, tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais...”.