sábado, 7 de agosto de 2010

A divina sujeira de Gullar.

Hoje li uma entrevista do Ferreira Gullar concedida ao jornal Estadão, em que o poeta comentava o FLIP(festa de literatura em Paraty) e o lançamento de seu novo livro: “Em Alguma parte Alguma”. Fico pasmo toda vez que leio algo do Gullar, que tem oitenta anos, diz-se caboclo ligeiro, criativo, falante e desafiador, portador de um senso de humor único.


Meu interesse por ele nasceu a partir da leitura do livro do Caetano (Verdade Tropical) donde ele tece uma serie de comentários sobre os poetas concretistas, dentre eles Pignari, os irmãos Campos e o próprio Gullar.

Lembrei de como fiquei perplexo ao ler “Poema Sujo”. Aquele poema era fabuloso, aquela rememoração da infância em cidade do interior, aquela sexualidade tipicamente brasileira, aqueles versos em alemão em plena época de ditadura, aquele adjetivo: sujo.

Não vou tão longe quanto Vinicius para dizer que é o maior poema já publicado em língua portuguesa, talvez ate concorde, se considerar a questão temporal, sincronicidade do poema, da vida, do desfecho, do medo, da experiência de poeta e poema fundidos em um só momento histórico.

Uma das vantagens dos poemas concretos ( e pode ate ser um erro dizê-lo) é que o fato de terem grande afinidade com o concreto poupa o leitor,a priori, de grandes abstrações.Logo, sem grandes divagações, podia imaginar a mobília, o “cheiro de bosta”, os nazistas gritando, nos corredores de auschwitz, aquelas frases endurecidas pela ausência de vogais,podia sentir o medo nas entrelinhas, podia captar o grito de socorro de um individuo isolado das suas raízes e posto numa situação de morte iminente,enfim,podia me sujar com ele.

Na entrevista, li que o Poema Sujo é sujo porque é visceral, vem das vísceras.

Sujei-me novamente.

Porque isso me lembra morangos M-o-f-a-d-o-s! do Caio Fernando Abreu.

Lembra-me, também, outro poema clássico de Olavo Bilac, que “fala” sobre talhar o mármore com um martelo, e de lá, do íntimo, das “vísceras” das pedras, extrair o poema;

Também não ficou de fora da minha “emergência de memórias” o boêmio poeta que dizia que “o cachorro era o uísque engarrafado”, ou seja, amigo que acompanha, que bebe ou que se torna a própria bebida.

Quanta nodoa o Gullar cravou no meu espírito com um poema; doces lembranças.

Eis o milagre da arte, esta capacidade de mergulhar o individuo tão docilmente entregue ao seu “destino” estruturalmente pachorrento (afinal, desde Édipo, parecia uma tolice lutar contra a sua inexorabilidade) na mais angustiosa vertigem, no fundo do posso, no simulacro de si, na verdade escondida na terceira margem do rio.

É a arte colocando, novamente, um nó na garganta dos durões.

É a arte de mãos estendidas, desde as vanguardas, para um moço do interior fortemente ligado a natureza humana.

E hoje, passado algum tempo desde que me encontrei com Gullar, eu ainda posso descobrir coisas novas a partir do poema, como a psicanálise contida na frase dita por mim à exaustão: Eu sou do interior.

É o poema sujo me sujando.

É a víscera se externando nas minhas frases.

É a vida mais bela com a beleza que a arte coloca,evidencia,ilumina, nela.

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