terça-feira, 29 de junho de 2010

Antônio Conselheiro

“Considerando em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta contra a ordem natural, como observou a fórmula do próprio delírio. Não era um incompreendido. A multidão aclamava-o representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além. Não deslizou para a demência. No gravitar contínuo para o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão, o meio reagindo por sua vez amparou-o, corrigindo-o, fazendo estabelecer encadeamento nunca destruído nas mais exageradas concepções, certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível em todos os atos e disciplina rara em todas as paixões, de sorte que ao atravessar, largos anos, nas práticas ascéticas, o sertão alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranqüilidade, a altitude e a resignação soberana de um apóstolo antigo.”

Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi além. Era um servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante, arrebatado por aquela idéia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos, impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível.” (Euclides, Os Sertões)

Eis Antônio Conselheiro!!!

Duvido que a literatura brasileira possa produzir outro personagem tão idiossincrático quanto o Conselheiro. Obviamente, não posso deixar de lembrar de Rubião, Quincas Borba, Riobaldo, Diadorim, Fabiano,Verter, Quixote e inda outros tantos que, por injustiça, deixo de fora desta lista.Entretanto,asseguro que hoje nenhum desses personagens me interessa mais que o Conselheiro...

Posso vê-lo pregando, andando pelos corredores das estações de trem, esfarrapado, barba longa, amarelada, observando,atônito, a dança e o assovio dos anjos nos trilhos dos trens.

Imagino-o parado diante da C&A, surpreso com as esmolas, que se recusa a receber, mas que avultam, compondo um cenário que ele consideraria bizarro.

O olhar penetrante de nosso profeta tropical sobre as saias curtas das pecadoras apressadas na rua da praia.

Aquele gesticular frenético e ensurdecedor do pobre sobrevivente do pós-crise-mundial querendo que ele CORTAAA CABELOOOO! CORRRRRRRRTAAA CABEEELLLO!

E Conselheiro recusando, altivo.

De repente, um avião corta os céus rumo ao salgado filho, aquele estrondo, ondas sonoras refletidas no asfalto e nas janelas-de-amaro.

Eis que um cone cai-lhe sobre a cabeça, servindo como um chapéu multicolorido: um mistério da fé.

O jovem multi-ligado, multicultural, de cabelos tingidos e arrepiados vê nesta figura uma alusão bárbara ao guitarrista irônico do extinto Guns n Roses...e corre a comprar pipocas para comer com coca-cola ao lado de sua Barbie.

Conselheiro não exita em auxiliar os motoristas a estacionarem, e ouve com dogmatismo a frase: Bem cuidado.

Um supetão lança nosso profeta ao solo: - Este ponto é meu! Meu chapa! Meu! Vai rodando...

É coisa do diabo, do coisa ruim, do caxinguelê, do belzebu, do cramuião.

Fica no chão, ao lado da flanelinha, a coroa de espinhos cor de laranja de Conselheiro.

Asceta, no limite da fome e do frio, entra no Mc Donalds.

E é convidado a se retirar por um afro-judeo asiático de 1,80m e 140 kg com uma suástica tatuada no antebraço.

Não entende porque aquela gente se recusa a partilhar o pão.Lá, no sertão...

Ajoelha-se na calçada e decide fazer uma oração:

“Senhor dos desgraçados, dizei-me vós, Oh! Deus! Será mentira? Será verdade? Tanto horror perante os céus!

Conselheiro é recolhido por indicação da vigilância sanitária.

Acorda numa cama, no São Pedro, barba raspada, cabelos raspados, com um tênis Nike velho, uma calça Levis surrada sendo chamado de irmãozinho por um psicótico incendiário.

Antonio Conselheiro revive a antropofagia litorânea: já não é mais o sertão.

E Conselheiro “ esmola pela rua, vestindo a mesma roupa que foi sua”.

                                                                                        * Foto de Carlos Vieira.

Um comentário:

Bruna disse...

Adorei! Adorei! Adorei!

Tu escreve muito bem Edson!! Olha só, não vou na aula hoje...já tiramos 10 na prova mesmo...

Não fica de cara comigo!!

Um beijo!